quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Divino & Humano

efere Cherterston numa célebre máxima: "Quem não crê em Deus, não é verdade que não crê em nada, porque começa a crer em tudo". Numa óptica completamente diversa, Voltaire afirmou: "Não concordo com as tuas ideias, mas insistirei continuamente para que tu as possas expressar".

O mundo de hoje insiste, como Voltaire, em criar espaço - porque tem necessidade - para que quem crê, possa falar da sua crença. O ateísmo que se professa modernamente, é pórtico para um crescimento desenfreado de superstições e crendices que a todas os extractos sociais afectam. Exemplos disso, são as feiras esotéricas, com as famosas leituras de mão e demais ritos bem como as publicidades, sem fim, dos ocultismos africanos, distribuídos nas saídas do Metro ou nas páginas centrais dos jornais. É evidente que o homem, ser social, está sedento de algo em que acreditar, porque tende naturalmente para o religioso e negar isso é negar a essência do homem e toda a sua história desde as origens. E exemplo de que nenhum sistema político é capaz de destruir totalmente a dimensão religiosa, é o caso da China, Estado ateu e ditador, e onde se regista uma das mais fortes vivências religiosas.

É por estas razões que é importante confrontarmo-nos acerca do nosso lugar de Católicos na sociedade e quais são as ideias e os gestos que expressam a nossa fé em Cristo Jesus, “de modo que, vendo as (n)ossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu.»” (Mt 5,16), O sigam e O tenham como seu Deus. Santo Agostinho dizia que as restantes religiões são “divinizações das paixões humanas”, logo a nossa missão é acreditar no Deus Amor e não nas “paixões humanas”.

É esta a diferença substancial do cristianismo face às restantes religiões: É um caminho que leva à divinização do humano. Porque Deus se fez Homem, o Homem pode “ser em Deus”. Este é o fruto mais eloquente e também mais objectivo da encarnação. “Ele, de facto, não veio em auxílio dos anjos, mas veio em auxílio da descendência de Abraão. Por isso, Ele teve de assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, para se tornar um Sumo Sacerdote misericordioso e fiel em relação a Deus, a fim de expiar os pecados do povo” (Heb 2,16-17). E São João, no seu Evangelho, refere: “No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. (…) E o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco” (Jo 1,1.14).

O nosso Deus humanizou-se para nos ensinar a viver como lhe é agradável e São Paulo, imitando o Senhor, ensinava essa via: “Fazei como eu, que me esforço por agradar a todos em tudo, não procurando o meu próprio interesse mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos” (1Cor 10,33).

Mas quando a glória e a honra de Deus são lesadas pelo pecado do homem, afastamo-nos de Deus e diabolizamo-nos, vivendo em função das paixões escravizantes. Só na expressão máxima da liberdade e do amor, de Cristo redentor, repara-se plenamente, a ofensa. S. Paulo diz mesmo que Cristo foi entregue como sacrifício propiciatório (Rom 3, 25), ou seja, como o lugar onde Deus perdoa os pecados do povo contra si.

A encarnação do Verbo veio possibilitar ao homem um caminho redentor, objectivo, não dependente de um qualquer subjectivismo estéril que leva a acreditar no que é mais conveniente, mas que é, antes, expressão do Amor de Deus qual Verdade que redime e salva.

Pasadas Pimenta
Omnes cum Petro ad Jesum per Mariam

Imagem: ANGELICO, Fra - The Annunciation in an Initial R (1430)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Caminho & Espaço

ocialmente, como evitar que desapareça a importância do outro e que o compromisso de todos não se esvazie ou que o seu objectivo se torne uma repetição que não incide mais na vida? “Como é que as Finanças podem leiloar um andar sem terem a certeza da situação e do estado da pessoa que foi penhorada e executada? Como é possível que haja quem autorize uma penhora a uma pessoa falecida? Que perversos mecanismos foram criados que levam a estas faltas de humanidade?” (Manuel Falcão in Jornal Metro, 15.02.11).

O lamentável caso conhecido na semana passada vem chamar a atenção sobre a forma de actuar de muitos organismos e pessoas em particular. Percebe-se que vigora a lei do menor esforço e, sempre, a presunção de que o outro é que devia fazer. O caso do leilão do andar penhorado com o cadáver da dona lá dentro, morta há oito anos, mostra uma única coisa: a irracionalidade e a desumanização no funcionamento dos mecanismos sociais e governamentais.

E perante o sentido de mal-estar geral e a impressão crescente de declínio político-social que nos envolve, cito as esclarecedoras palavras do Card. Tarcísio Bertone, na apresentação dum livro do senador Bobba. Ele transmite-nos que “é preciso não só um testemunho pessoal, mas uma acção colectiva mais ampla para a reconstrução de um costume de vida marcado pelo respeito das leis, destinada não só a reprimir os comportamentos desviantes, mas a promover a prática da honestidade; a encontrar e ditar as regras mais justas de convivência; a interiorizá-las na consciência como modelos partilhados e respeitados, não por receio do castigo, mas pelo seu valor intrínseco e positivo”.

E diz ainda: “refiro-me, por exemplo, à tutela da vida, desde o primeiro momento da concepção até à morte natural e à promoção da estrutura natural da família, como união entre um homem e uma mulher fundada no matrimónio, deve ser promovida e defendida prioritariamente, reconhecendo a sua peculiaridade e o papel social insubstituível, perante formas de uniões radicalmente diversas e desestabilizadoras. Mas recordo também a realização dos valores humanos e evangélicos da liberdade e da justiça, a promoção da paz social e a atenção aos mais necessitados”.

Por isso, compartilho um espaço (muito importante para mim) de leitura, para que por ele o nosso agir, como o de Maria Santíssima, seja mais humano e cuidado. Apresento a obra intitulada Caminho, de São Josemaría Escrivá. É uma proposta que estimula reflexões de grande actualidade sobre o agir concreto de cada um. É um livro para todos e que se devia ler e viver porque nele são definidos o que deve ser o compromisso na vida pública e no serviço do bem comum.

Caminho, tem um estilo directo, de diálogo sereno, em que o leitor se encontra frente às exigências divinas num ambiente de confiança e amizade. O autor aconselha: “Lê devagar estes conselhos. Medita pausadamente nestas considerações. São coisas que te digo ao ouvido, em confidência de amigo, de irmão, de pai. E estas confidências são ouvidas por Deus. Não te contarei nada de novo. Vou reavivar as tuas recordações, para que se eleve algum pensamento que te fira, e assim melhores a tua vida e entres por caminhos de oração e de Amor. E acabes por ser alma de critério” (Caminho, Prólogo do autor).

Pasadas Pimenta
Omnes cum Petro ad Jesum per Mariam
Imagem: ANGELICO, Fra - Madonna of Mercy with Kneeling Friars (1424)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Vida & Resposta

É o futuro da nossa vida que nos ajuda a perceber o presente. Sim, é a expectativa do futuro em Deus (no plano religioso) que nos leva a agir no presente, cumprindo a sua vontade. E num plano afectivo e relacional o homem para ser estimado pelos seus semelhantes, age praticando a justiça e a paz. São Paulo sintetiza essa ideia de uma forma admirável: “É que o Reino de Deus não é uma questão de comer e beber, mas de justiça, paz e alegria no Espírito Santo. E quem deste modo serve a Cristo é agradável a Deus e estimado pelos homens” (Rm 14,17-18).

Mas o nosso desejo é e será sempre insatisfeito, porque no dinamismo da nossa vida, nunca é alcançado na medida do nosso desejo. Só Deus completa, completa e ilumina tornando mais sublime a nossa vida, através do seu amor. Só por Deus é que o amor é amor e só em Deus é que posso amar verdadeiramente. Porque o amor é dom e é dom dado por Deus e Deus é amor. Logo, só sendo amado por Deus e amando-O com todo o meu coração é que com este mesmo coração posso amar. “Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava à mesa reclinado no seu peito” (Jo 13,23), bela forma de mostrar o amor pelo Mestre. Mas o maior amor está da parte do Mestre, Ele que ama a todos e “que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo” (Jo 13,1), ou seja, morte de cruz. Mas o seu amor não se resume só no acontecimento da cruz, está presente em muitos outros momentos. Um da minha afeição, é o amar de Jesus através do seu olhar: “Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele”. (Mc 10, 21) O coração deste encontro muito especial, como de toda a experiência cristã é ser acolhido. Por isso, o que define o cristianismo não é, primariamente, uma moral, mas a experiência de Jesus Cristo que nos ama pessoalmente, jovens ou idosos, pobres ou ricos: ama-nos!

Mas toda esta relação acontece na liberdade, liberdade que se herda e que se realiza na escuta. Porque a existência é uma caminhada, que vai para além do conhecido e que só completa e se compreende escutando. E, assim, e segundo Jean-Louis Chrétien, a primeira vocação humana é ser e o seu primeiro agir deve ser, deixar-se ser como resposta, reposta ao sentido primeiro ou palavra primeira de Deus, palavra criadora e, num momento seguinte mas uno ao anterior, deve responder à palavra do seu semelhante porque é palavra sustentadora.

Esta resposta não é fechada, mas sim aberta ao futuro, porque acontece a cada dia e a cada momento. Porque é neste gesto que se encontra a fonte de toda a vida cristã e a sua razão fundamental. O exemplo mais belo é a participação em assembleia em que cada um responde a Deus que lhe fala através da sua Palavra e ao seu irmão na fé, no momento da paz. E concluiu São João: “Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro. Se alguém disser: «Eu amo a Deus», mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4,19-20).

Graças a Deus pelo dom da minha vida neste meu 25º aniversário.
Pasadas Pimenta

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Âncora & Força

Actualmente, o Evangelho de Mateus será, certamente, dos quatro Evangelhos, a narração mais conhecida, devido ao belo Discurso das Bem-aventuranças (Mt 5,1-12) ou mesmo pela oração do Pai Nosso (Mt 6,9-15). Este evangelho era central, já desde muito cedo, para Igreja primitiva. Era mesmo denominado o “Evangelho da Igreja”. Em poucas palavras, ele era para a Igreja primitiva a âncora e a força na dificuldade e na perseguição, porque tinham presentes as palavras de Jesus: «Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu.» (Mt 5,10). E a prova de que a Palavra de Deus é actual, no coração séc. XX, encontramos na boca de Etty Hillesum a mesma denominação de âncora acerca deste Evangelho, no campo de concentração nazi.

Além de ser o “Evangelho da Igreja”, é também chamado o Evangelho dos discípulos, porque só sendo discípulo, ou seja, só aceitando Jesus como Cristo e vivendo em comunhão com Ele, é que o leitor pode compreender, verdadeiramente, Jesus e a sua mensagem presente neste Evangelho. Mas o discípulo tem que ir mais além, para perceber o texto evangélico. Umberto Eco, in Seis passeios pelos bosques da ficção, refere: “É necessário mergulhar neles”! O mesmo é dizer: é necessário deixar-se envolver pelo texto, porque só assim se poderá alcançar e descobrir o que está escondido nele e o que Deus me quer dizer através desta palavra que é para todos e para cada um em particular.

Textos como o Evangelho de Mateus foram escritos para serem lidos. Eles estão direccionados ao leitor particular ou geral. Mas, como adverte Paul Ricoeur, a leitura é experiência, isto é, ler é tentar perceber a sua acção na dimensão humana do leitor.

Perceber um texto é sempre uma questão problemática. Porque só percebo a obra se perceber e conhecer o autor e as circunstâncias da sua redacção. Assim, para viver em comunhão com Cristo, segundo este escrito sagrado, devo mergulhar no texto e tentar viver em comunhão com a vida do autor como, aliás, sou chamado a fazê-lo com todos. A verdade é que quanto mais entramos num texto sagrado, mais lhe vamos percebendo riquezas que sempre lá estiveram mas que se revelam segundo o meu estado de alma. Quantas vezes acontece que, um texto lido vezes sem conta, revelou, num certo momento, uma luz providencial que nunca tinha brotado nas leituras anteriores! E daí resultou uma paz infinita que iluminou aquela situação concreta!

Ler um texto sagrado deveria implicar sempre, de algum modo, acolher um desafio novo que me implica na vida. A este propósito, deveríamos perguntar-nos, a nós próprios, mais vezes: O que fazemos com a Palavra de Deus que escutamos ou lemos? Foi só ouvida ou, antes, mergulhámos n’Ela para que nos sintamos desafiados a novas atitudes e novos comportamentos? A verdade é que enquanto não mudarmos algo em nós, como fruto da Palavra, não conseguiremos saborear a beleza e o gosto da mensagem que é de Salvação.

Proponho, hoje, este desafio: Vamos tentar mergulhar na Palavra através da leitura de Mt 5,1-12. É um dos textos mais lidos do Novo Testamento mas… imaginemos que é a primeira vez que o lemos. Deixemo-nos interpelar pela sua mensagem:

Ao ver a multidão, Jesus subiu a um monte. Depois de se ter sentado, os discípulos aproximaram-se dele. Então tomou a palavra e começou a ensiná-los, dizendo:
«Felizes os pobres em espírito,
porque deles é o Reino do Céu.
Felizes os que choram,
porque serão consolados.
Felizes os mansos,
porque possuirão a terra.
Felizes os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros de coração,
porque verão a Deus.
Felizes os pacificadores,
porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça,
porque deles é o Reino do Céu.
Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu.»

Desta reflexão, resultam três propostas de leitura que aqui deixo: Evangelho de S. Mateus, o Diário de Etty Hillessum e Seis passeios pelos bosques da ficção de Umberto Eco. E um pedido de desculpa pela ausência do texto da semana anterior, mas motivos académicos não me permitiram redigi-lo.
Pasadas Pimenta
Omnes cum Petro ad Jesum per Mariam

Imagem: Cruz âncora das catacumbas (Símbolo cristão) que é o símbolo da salvação, símbolo da alma que felizmente chegou ao porto da eternidade.